domingo, 5 de setembro de 2010

Jornalismo tendencioso: como fazer

Sou assinante da Exame¸ revista de economia do Grupo Abril. Na edição de 25 de agosto, fui surpreendida por uma reportagem que pode dar a exata medida de como uma matéria pode ser tendenciosa e servir a interesses outros, alheios ao interesse jornalístico.

Quem precisa de trem-bala? não é a matéria de capa da edição, mas tem chamada na capa e é o destaque na "Carta ao Leitor", escrita pela editora da revista. O conteúdo da matéria é o seguinte: a repórter questiona o investimento previsto pelo atual governo federal em um trem-bala (40 bilhões de reais), se o trânsito nos grandes centros urbanos é caótico e o transporte público não atende à população. O fator humano da reportagem fica a cargo de Maria dos Anjos, uma senhora que leva 2 horas e meia para chegar a seu trabalho, que fica a 37 quilômetros de sua casa. A questão levantada é: “por que o governo federal se propõe a gastar 40 bilhões de reais num trem-bala se o trânsito das grandes cidades está à beira de um colapso?”

Onde está o jornalismo tendencioso, neste caso? Ele reside no simples fato que não há uma conexão lógica possível entre o tempo que dona Maria dos Anjos e outros brasileiros fazem para ir ao trabalho com o projeto do trem-bala. Não se pode criticar o segundo tendo como base o primeiro: o transporte público e o planejamento do trânsito nas cidades são de responsabilidade das prefeituras, não da União.

Poderíamos pensar, numa ótica otimista, que os editores da revista e a jornalista responsável pela matéria simplesmente ignoravam o fato de que transporte público urbano é de competência das prefeituras. Mas, não: na própria matéria, há uma fala do diretor-geral da ANTT: “Cabe às prefeituras cuidar do transporte nos municípios, e aos governos do estado, nas regiões metropolitanas”.

De fato, é inadmissível que a dona Maria dos Anjos gaste quase três horas para percorrer 37 quilômetros utilizando o transporte público de São Paulo, mas o real responsável por isso é a prefeitura da cidade. E será que a matéria questiona a prefeitura de São Paulo a respeito disso? A resposta é: não. A prefeitura de São Paulo e o governo do estado aparecem lá no final da reportagem, no último intertítulo, bem no final da pirâmide invertida – a ser lido apenas pelos leitores persistentes – para falar sobre a duplicação da estrada do M’Boi Mirim, na zona sul paulistana.

É errado questionar? - Questionar é saudável e a tarefa número um de qualquer jornalista. E o projeto do trem-bala precisa mesmo ser questionado, colocado em perspectiva. Ele não representa um investimento concentrado em uma área muito pequena do Brasil (Rio-Campinas-São Paulo)? Não seria mais viável e economicamente responsável investir esse dinheiro na infraestrutura aeroportuária de que já dispomos? Quais as alternativas possíveis ao trem-bala?

O problema de tudo nesta reportagem é como se questiona. Lá no meio da matéria, há a análise de especialistas em infraestrutura (que não são identificados) de como o dinheiro destinado ao trem-bala poderia ser mais bem empregado. E esse deveria ter sido o mote da reportagem, ponto. Ao colocar o drama de dona Maria dos Anjos, erroneamente atribuindo à União uma responsabilidade que é da prefeitura e do estado de São Paulo, a matéria assume seu claro oportunismo eleitoral. Afinal, por que a prefeitura e o governo estadual de São Paulo não foram questionados frontalmente sobre a situação de dona Maria dos Anjos e de outros tantos paulistas e paulistanos? É só lembrar o histórico político do Grupo Abril e de seus fundadores para saber o porquê.