sábado, 28 de maio de 2011

Discussão no 254

Com os fones de ouvido, não escuto a discussão: apenas vejo gesticulação intensa de um senhor de idade, em pé, contra uma moça de 20 e poucos anos que está sentada nos bancos reservados do ônibus. Resolvo prestar atenção.

Percebo que trocam acusações, e o motivo é mesmo o uso do banco reservado. O velho a insulta e ela revida:

- O senhor não me conhece. Sempre cedo o lugar, mas só porque o senhor falou desse jeito, vai ficar em pé agora.

Interpelada por outra passageira, dizendo que ela estava, afinal, sentada num lugar reservado para idosos e que deveria se levantar, retrucou:

- Isso aqui é Brasil, minha senhora. Lei não pega aqui não.

Como é bom morar em um país civilizado!

domingo, 15 de maio de 2011

Rio, Sampa e a síndrome da Cidade Partida

Só posso falar com conhecimento de causa aqui do Rio, uma vez que não moro ou morei em São Paulo. Mas começo a crer, pelo noticiário que me chega de lá, que as formas cada vez mais criativas de preconceito social estão criando por lá o que já conhecemos muito bem por aqui, em terras cariocas: a síndrome da Cidade Partida.

Quando se fala do Rio de Janeiro ao turista, ao estrangeiro, a quem é de outro estado, imagens que surgem: praias, orla, talvez até o centro histórico. Tudo centro e Zona Sul. Zona Norte, no máximo, o Maracanã. A Zona Norte só ganhou noticiário recente por conta da retomada do Complexo do Alemão. É a parte mais esquecida da cidade, considerado subúrbio, onde poder público faz visitas esporádicas para recapeamento de algumas ruas e podas de árvore - avidamente agradecidos pelos moradores, como se fosse algum favor que lhes fizessem.

E nessa dinâmica, o que acontece no Rio é um preconceito social tão enraizado, que acabou criando o termo "Cidade Partida", muito comum para adjetivar toda a tensão que existe entre moradores da Zona Norte e moradores da Zona Sul. Os dois lados do Túnel Rebouças vivem em trocas de acusação, dedos na cara e argumentos como "eu pago mais IPTU que você" passam a valer a garantia dos direitos fundamentais a quem quer que seja. Uma grande bobajada, como se pode ver.

Então vamos lá. Recentemente, em São Paulo, soube-se que o governo do estado desistiu de instalar uma estação do metrô em uma via importante do bairro de Higienópolis, classe média, porque a associação de moradores teria protestado a respeito disso. Nas palavras de uma moradora, a grande preocupação era que a estação do metrô trouxesse "mendigos, drogados, gente diferenciada".

Se mudassem o nome do bairro para Ipanema e o nome da estação de metrô para General Osório, ficava tudo perfeito. Foram os mesmos argumentos insanos que alguns moradores da orla do Rio apresentaram para tentar vetar a construção da estação General Osório. Claro que não podemos dizer que eram a maioria - a maioria, na verdade, até gostou da extensão do metrô, prometida há três décadas, finalmente sair do papel e facilitar o transporte para o centro da cidade, onde geralmente trabalham. Mas o fato de existir uma mentalidade dessa é de se espantar. Como se a falta de uma estação de metrô pudesse impedir a chegada de "gente diferenciada" a esses bairros! Quem quer chegar, vai de ônibus, o que for.

[Nota: ao contrário do desfecho de São Paulo, aqui a estação General Osório foi inaugurada mesmo. Mas isso em nada abona o governo fluminense, que não fez mais do que sua obrigação]

E, afinal das contas, o que é "gente diferenciada"?

Como disse no início, uma forma muito criativa de exalar seu preconceito social. "Gente diferenciada" é gente do subúrbio, de áreas menos favorecidas? Provável que sim. Afinal, eles lá têm direito de por os pés em nosso lindo reino? Só se for para ser porteiro de nossos prédios, ser babá dos nossos filhos, limpar nossas casas. Se a gente parar pra pensar, a hipocrisia desse termo pode ser estendida às raias do absurdo.

"Gente diferenciada" pode lotar o metrô? Pode.
Mas só pra chegar mais cedo no serviço.
Aqui no Rio, pelo menos que eu saiba, ainda não criaram um eufemismo para as pessoas do subúrbio, mas a hipocrisia é a mesma. Quando se reclama da sujeira nas praias em Ipanema, a culpa é sempre da estação General Osório, que possibilitou um acesso mais fácil dos moradores do subúrbio à praia - ou da "gente diferenciada", segundo a nomenclatura criada pela moradora do Higienópolis. É a reclamação constante na Zona Sul. E se alguém pondera que a praia é espaço público, a que todos têm direito de acesso, lá vem de novo o argumento do "eu pago mais IPTU que eles" e a discussão vazia e inútil recomeça. Parece que o acesso facilitado dos moradores do subúrbio à Zona Sul só tem valia para que a “gente diferenciada” nunca mais chegue atrasada ao serviço...

É desanimador perceber a síndrome da Cidade Partida. Sabem por quê? Porque me lembra um velho estratagema militar, tão antigo quanto o Império Romano: “Dividir para conquistar”. A quem interessa que uma metrópole fique dividida dessa forma, que a tensão social crie tamanha cisão a ponto de alguns moradores da Zona Sul pedirem para acabar com o ponto final de um ônibus no Jardim de Alah porque o seu ponto de origem vinha da favela do Jacaré, na Zona Norte? (eu não estou mentindo, isso é verdade). Nenhum morador, seja da Zona Norte, seja da Zona Sul, pode se beneficiar disso. Enquanto ficam nessa guerra e comparando valores no carnê do IPTU, o governo silenciosamente faz o que quer.

P.S.: Aliás, estações de metrô parecem ter o dom de mostrar bem essa tensão social, pois estou me lembrando de outro caso recente. Há algum tempinho, o Metrô Rio criou mais uma estação em Copacabana, logo depois da já tradicional Siqueira Campos. Por ficar perto do morro do Cantagalo, nada mais natural que batizassem a estação de: "Cantagalo". Certo? Pois então. A associação de moradores da região fez uma tremenda grita e exigiu a troca do nome. Por quê? Porque há uma favela chamada Cantagalo ali. Onde já se viu colocar nome de favela em uma estação do metrô?